Capítulo 33

I won't let you fall away



Música do capítulo: Oh Star - cover

Quinta-feira, 1 de Abril
Sarah

Todas as crianças levam no coração um daqueles medalhões que se abrem, depois de muito esforço, para revelar os dois rostos mais importantes na sua vida. Os seus faróis, guias, mentores… Os seus pais – pelo menos, no sentido afetivo da palavra. Sei bem como o sentido biológico é difícil de encontrar hoje em dia. E sei por experiência própria.

Uma das minhas metades nunca esteve bem preenchida. Levava um desenho de menina, rabiscado à pressa na imaginação, durante o pouco tempo em que tinha à minha frente o objeto de estudo – o meu pai.

Minha mãe sempre me disse que ela e o meu pai nunca foram casados, porque, na verdade, não se amavam. E quem é que quer viver numa casa sem amor? Por isso, ela assumiu todas as responsabilidades – e o meu pai concordou sem contestar. Bem, ele ainda meio que tentou durante algum tempo, mas acho que ainda ficava mais deprimido no fim das suas “visitas”. Eu, pelo menos, ficava. Cada vez mais eu via que aquele não podia ser, no sentido completo, o meu pai. Não podia; ele era um estranho! Eu não o conhecia, nem sequer via em mim qualquer reflexo dele.

Entretanto, minha avó faleceu. Ela e o meu avô eram o casal perfeito. Amavam-se verdadeiramente, e todas as mudanças que viveram ao longo do tempo só serviram para aproximá-los. Até eu, sendo a criança que era, o conseguia sentir. Se não fosse por eles, acho que eu ainda não entenderia o que supostamente é o amor de casal. Mesmo assim, o que tenho são só memórias antigas, comidas pelo tempo.

Engraçado, a gente raramente lembra de imagens. O que fica sempre são os cheiros, os sabores, os sentimentos… Tudo misturado e condensado até formar uma sensação que possamos rotular. Ainda lembro perfeitamente da sensação de desconforto que era estar com o meu pai, sem saber o que dizer ou fazer; o calor dos braços da minha avó, quando precisava de um lugar onde encostar a cabeça; as palavras tanto duras quanto afetuosas do meu avô, sempre que era necessário um empurrãozinho…

Era assim, o meu avô. Sua sabedoria fazia jus à idade e, apesar de nem sempre ter sido o pai perfeito para a minha mãe, acho que acabou por se redimir lindamente. Depois de vovó partir (ainda era eu pequena, tinha uns sete anos), passamos a viver com ele definitivamente. Nós trazíamos juventude e vivacidade, ele oferecia bom senso e segurança. Ainda assim, sei que não o fez para que a minha mãe lhe perdoasse os erros que tinha cometido com ela. Fê-lo porque era um homem diferente daquele que quase não educou minha mãe por ter de trabalhar demais, e foi isso o que ele sentiu que estava certo quando viu sua filha lutando para educar uma criança sozinha.

É por isso que hoje trago no meu medalhão os olhos doces da minha mãe e, do outro lado, a mão firme do meu avô. Porque é esse o tipo de homem que ele é, ainda, dentro de mim.


Quinta-feira, 1 de Abril
Taylor

A Sarah não veio à escola hoje.

Primeiro, pensei que estivesse só atrasada, ou que tivesse adormecido. Eu e a Jane vimo-la no ensaio de ontem e estava tudo bem. Por isso, durante a primeira aula, não me preocupei muito. Mas quando vi que ela continuava sem aparecer, decidi ligar-lhe. Tentei e tentei e voltei a tentar, deixei mensagens, pedi à Jane para ligar ela e… nada.

Pode então imaginar o estado em que eu estava quando cheguei em casa, no final das aulas. A parte de mim que dizia que estava tudo bem, que devia ser apenas um imprevisto ou algo do tipo, estava realmente magoada por ela não achar importante dizer que não vinha às aulas – pelo menos, para que eu soubesse que ela estava bem. O que nos leva à outra parte, que estava num estado de negação demasiado profundo para admitir que lhe tivesse acontecido fosse o que fosse.

Minha mãe tentava me acalmar, mas o tiro saiu pela culatra e quem acabou estressada foi ela. Justamente o que eu precisava, a pessoa mais racional aqui em casa estressada também. Não sei se foi por já não conseguir aguentar mais meu nervosismo ou por realmente achar que era boa ideia, mas logo ela estava sugerindo que eu fosse à casa da Sarah, ver o que estava acontecendo por mim mesmo.

– Mas você realmente acha que isso é mesmo boa ideia? – eu ainda estava apreensivo, especialmente porque, se ela me quisesse lá, ela me teria ligado, não é? A não ser que ela não pudesse ligar porque… Ok, não vamos por aí.

– É a melhor ideia que eu tenho, então vai ter que servir.

– E se não estiver ninguém em casa?

– Você vem embora de novo, mas pelo menos tira essa opção da lista.

– Certo, você tem razão… Mas por que é que ela não atende minhas ligações?

– Se calhar ficou doente e ainda nem sequer olhou para o celular.

– Se calhar… - murmurei, desapontado. Ela ainda não tinha ficado doente até agora, mas tenho certeza que, se tivesse que faltar por isso, ela me avisaria. No mínimo, ela me ligaria para xingar as chuvas primaveris de Franklin.

– E aí, filho? Vai ou não?

Enchi o peito de ar, torcendo verdadeiramente para que a coragem viesse junto.

– Hmmm… vou. Vou? É, eu vou. ‘Tou indo, mamãe, até já.

Ela deu uma pequena risada, como se achasse minha indecisão algo adorável, e finalmente respondeu com um “boa sorte” quando eu já vestia o casaco e abandonava a casa.

Enquanto minhas pernas andavam, quase correndo, no automático, minha cabeça repassava as mesmas preocupações, as mesmas dúvidas, os mesmo cenários – e nenhum deles era agradável para mim. Meu estômago revirava com cada um deles e isso me dava vontade de simplesmente dar costas e desistir da ideia. Porém, algo me fazia continuar decididamente na direção da casa dos Bayley, apesar de tudo isso. Era como se algo dentro de mim soubesse que Sarah precisava de mim.

Nesse momento, era fácil compreender porque Ron deixou que a bolinha de luz o guiasse. Eu não tinha herdado nenhum Apagador de um feiticeiro poderoso, mas era como se a voz de Sarah sussurrasse meu nome também. Ou isso, ou eu estava perdendo minha sanidade. Que ótimo. Quem disse que eu precisava dela?

Enfim dobrei a última esquina, me deparando com a visão da rua que eu tanto antecipava. Dei uma pequena corrida até à porta que eu já vira tantas vezes antes e pressionei a campainha, murmurando coisas para mim próprio que nem eu entendia. Passada uma eternidade, me pareceu, a porta rodou sobre as dobradiças, revelando uma cara que eu também conhecia bem.

– Taylor? – os olhos inchados e vermelhos pareciam surpresos, mas não de um jeito irritado, o que só não me fez suspirar de alívio, porque, claramente, havia outras preocupações de momento.

– Louise… – falei, sem conseguir acrescentar mais nada. Suas roupas escuras, juntamente a sua expressão doída faziam meu coração querer murchar. Jamais a tinha visto desse jeito tão…frágil. – O que aconteceu?

– Querido… - ela pisou a soleira da porta e me abraçou. Não sabia o que pensar, mas não podia ser… De jeito nenhum! Só podiam ser invenções do meu nervosismo, ou a tendência para ver os piores cenários…

Foi então que outra ideia surgiu.

– Foi o Sr. Bayley, não foi? – ela apertou-me com mais força e eu pensei sentir um soluço passar pelo seu peito.

– Sim – ela conseguiu apenas murmurar. Abracei-a com igual força, entendendo tudo o que me causava tantas dúvidas apenas há algumas horas atrás com uma facilidade tremenda. Aquele era um cenário que eu não tinha considerado – mas que, se tivesse, se teria encaixado no lado dos piores. Daqueles que repugnamos assim que nos atravessam a mente, por serem tão horríveis. Ainda a semana passada eu tinha estado naquele mesmo lugar, escutando o Sr. Bayley implicar com a minha despedida demorada de Sarah.

É simplesmente inacreditável. Era como se ele estivesse apenas no seu stand, gerindo tudo, censurando alguém por fazer algo errado, fechando vendas. Como sempre.

Mas não.

Não era no stand que ele estava.

– Lamento imenso – eu murmurei de volta, sentindo minha garganta fechar. Mas eu não choraria ali. Não se eu tinha respeito à dor da família.

Louise me largou repentinamente, como se de súbito achasse que não devia estar se apoiando num adolescente amigo da sua filha do jeito que estava. Ela se afastou, me dando espaço para entrar, e eu sorri, sem saber o que eu estava fazendo ali. Só sabia que… bem, agora eu tinha que ficar.

– Mãe, quem tocou?

A voz de Sarah estava rouca e embargada, contudo não deixava de ter o som melodioso de sempre. Era estranho escutar tanta dor numa voz tão… pura.

– Mã—

Ela adentrava a sala, quando me viu ali – olhando a porta que dava para o corredor com expectativa – e simplesmente pareceu congelar. Um espasmo de dor cruzou suas feições, como se a minha presença a trouxesse de volta a um mundo onde tudo estava errado. Ainda assim, eu vi um pouco de alívio iluminar seus olhos. Ou seria só minha imaginação viajando de novo?

Esperei, receoso, pela sua reação. Não fazia ideia se eu estava no sítio certo à hora certa – ou se era exatamente o contrário –, mas dar costas agora era algo que eu não conseguiria fazer.

– Tay – se a sala não estivesse num tão completo silêncio, eu não teria entendido. Mas eu sabia que tinha escutado bem: era o meu apelido que ela tinha pronunciado – e essa era toda a confirmação que eu precisava.

Cobri rapidamente a distância entre nós com largas passadas, sem dar espaço a uma reconsideração. Meus braços envolveram seus ombros cuidadosa, porém decididamente, e senti suas mãos agarrarem avidamente o tecido que cobria minhas costas.

Então, foi como se eu a sentisse desabar contra o meu peito.

Eu sentia suas lágrimas molharem minha camiseta e seus soluços passaram a correr livremente. Eu podia sentir seu corpo pequeno se contrair e logo vir de encontro ao meu de novo. Mordi o lábio inferior, tentando respirar normalmente. O que eu estava fazendo ali era o papel de rochedo, eu não podia ceder também! Tentei me concentrar na Sarah que eu vi rindo ainda ontem de uma piada idiota de Jane – mas, como pode adivinhar, isso só piorou tudo.

Senti o nó na minha garganta se apertar, querendo explodir, e meus olhos marejarem. Mas eu não iria chorar. Eu não podia.

Minhas mãos desenhavam pequenos círculos nas costas dela, acarinhando-a do jeito que conseguiam. O aperto dos meus braços era forte – “talvez até forte demais”, pensei em certa altura, mas assim que comecei sequer a afrouxá-lo, ela me apertou com uma força que transmitia desespero. Era como se temesse que eu desaparecesse também. Apertei automaticamente de volta e não voltei a tentar suavizar o abraço.

Eu me sentia péssimo, mas sabia que não era nada comparado com o que ela sentia. Pelo que tinha vindo a entender, seu avô era como um pai. Seu pai biológico mora em L.A., contudo eles não costumam se falar muito. Eu via perfeitamente que Sarah se sentia em relação ao Sr. Bayley como eu me sentia em relação a meu pai e, vez ou outra, Justin. O sentido de segurança, o respeito, a admiração… Tudo o que um pai representa estava contido no Sr. Bayley para ela.

Como eu me sentiria se tivesse perdido o meu pai de uma hora para a outra?

Lutei de novo contra as lágrimas, tentando me recordar que era exatamente por isso que eu precisava ser forte: o que ela necessitava agora não era de outro sofredor. Se fosse isso, ela já teria chorado assim no ombro de sua mãe. Mas eu sabia que ela se tinha segurado ao máximo para tentar passar alguma segurança – mesmo que falsa – a Louise. Entendi então que foi por essa mesma razão que Louise me abraçou durante tanto tempo quando me viu. Ela também não iria querer desabar em frente à filha. E lá estavam as duas, tentando ser fortes uma pela outra, porém ruindo por dentro ao mesmo tempo.

Passou pela minha cabeça que, em qualquer outro caso, ambas estariam se apoiando no Sr. Bayley. Não poder fazer isso devia estar realmente as matando! Como a perda ficava cada vez mais óbvia aos poucos… E ao mesmo ritmo eu me convencia que ele não ia aparecer da porta que dava para a cave, implicando com o abraço que eu partilhava com Sarah, enquanto exibia aquele sorrisinho zombeteiro a que eu estava tão habituado. Quem mais iria irritar e colocar juízo na cabeça de Sarah a um só tempo? Mais ninguém tem esse poder!

Suspirei, afagando os cabelos de Sarah e sentindo seus soluços diminuírem gradativamente de intensidade. Por mais que isso fosse bom por agora, eu sabia que esse tinha sido apenas o primeiro de muitos momentos de luto que ainda estariam por vir – e sabia também que, ao contrário desse, eu não ia poder estar lá durante todos eles. Uma impotência me fez sentir quase paralisado, porém eu entendia que tinha de ser assim. A verdade era que, por mais que eu estivesse ali, eu nunca poderia estar com Sarah naquele lugar interno onde a dor a submergia. Mesmo que eu fizesse tudo o que pudesse (e eu iria fazer), jamais isso chegaria, porque não curaria o machucado.

O mal era irremediável.

Esse pensamento fez a impotência voltar com o dobro da intensidade e eu prometi a mim mesmo que, sempre que eu tivesse qualquer influência no problema, eu faria tudo – tudo – para não ver Sarah nesse estado de novo. Jamais aguentaria vê-la assim e ser a razão.

Enquanto eu me perdia ainda nessas reflexões, Sarah ia se acalmando aos poucos. Já devia fazer uma boa meia hora desde que eu tinha dobrado aquela última esquina, ainda sem saber o que realmente se passava. Acho que, se soubesse, teria apenas corrido mais depressa.

Senti Sarah suspirar algumas vezes contra o meu peito e dirigi toda a minha atenção à face que se desprendia vagarosamente do seu apoio até ao momento. Ela levantou os olhos inchados para mim e ver a fatiga e dor ainda presentes nas suas feições foi o equivalente a outro soco no estômago. Mesmo assim, ela sorriu, como se me quisesse agradecer, porém soubesse bem demais que não precisava. Tanto quanto eu, ela sabia que eu simplesmente não seria fisicamente capaz de deixá-la passar por isso sozinha, fosse porque motivo fosse. Isso, porque – como eu soube nesse momento e acho que ela também – era ali que eu pertencia. Ao lado dela.

Sarah pegou a minha mão, se virando na direção do corredor. Atravessamos os cômodos necessários para sair para o pátio. Era o primeiro dia de Abril, afinal, o tempo começava a ficar mais ameno – especialmente sendo que, àquela hora do dia, facilmente se conseguia sentir o calor do sol irradiar por detrás da fina camada de nuvens.

Teria sido um ótimo dia, não fossem as circunstâncias.

Olhei para a garota ainda um pouco vermelha do meu lado, esperando que ela tomasse alguma decisão. Contudo, agora que tínhamos chegado aqui, ela parecia ter perdido a vontade de tudo e mais alguma coisa. Deixei um pequeno sorriso preocupado se formar em meus lábios, enquanto assumia o controle. Me recostei numa espreguiçadeira, puxando Sarah para, por sua vez, se recostar em mim. Ela obedeceu quase mecanicamente, porém mostrou não estar totalmente desligada de tudo quando se virou de lado, se ajeitando mais confortavelmente em meus braços. Passei um deles por suas costas, afagando seu cabelo de novo. E… bem, esperei.

- Tay… - ela começou passado pouco tempo, porém desistiu de imediato.

- Diga – encorajei meigamente.

- Você… você acredita no Céu?

Não posso dizer que não via isso chegando.

- Sim.

- Como é que acha que é? – ela brincava com o zíper do meu casaco, focando nele o seu olhar. Mas eu sabia que sua atenção estava, na verdade, suspensa nas minhas palavras.

- Hmm… Algo muito belo, com certeza, mas diferente de tudo a que estamos habituados.

- Acha que é difícil entrar?

- Acho que tem a ver com o amor que sentimos. Alguém que tenha amado jamais pode parar noutro lado que não o Paraíso. É um sentimento tão puro que só pode pertencer lá.

- E o que você acha que vamos encontrar lá? – ela tinha parado de brincar com o zíper e agora dirigia sua atenção ao jardim à nossa volta, observando cada detalhe, como se esperasse algo. Sorri.

- Não sei bem. Felicidade? Paz?

- Isso é o que todos falam, Tay. Me diga o que você imagina – seu tom adquiriu um traço assertivo, aumentando de volume pela primeira vez, e seus olhos se levantaram para mim. Segurei seu olhar triste, feliz por ela não parecer tão indiferente como mais cedo.

- Bem… Quando eu penso nisso, eu vejo muita luz, sabe? Como quando você tem os olhos fechados e acendem uma lâmpada em frente deles. Penso em calor, também. Não muito calor, mas aquele calor agradável e ameno do começo do verão – fiz uma pausa, pensando e desviando o olhar para o céu. Um sorriso pequeno se formou – E eu penso em paz e felicidade, na verdade. Deve ser como você apenas conseguisse sentir isso. Como se tudo estivesse sempre bem e jamais pudesse correr mal.

- Acha que se sente amor também?

- Sim… sente-se amor com certeza.

- Ainda bem. Eu quero que ele se lembre que eu o amo.

Acariciei seu ombro mais uma vez.

- Ele se lembrará, linda. Pode crer que ele lembrará.

Ela assentiu, com a respiração mais pesada. O som era facilmente audível no silêncio do pátio, onde apenas se escutava um ou outro barulho de motor vindo da estrada ou o cantar de alguns pássaros que já chegavam para a primavera.

- Tay… você acha que o amor pode acender estrelas? – sorri com a doçura súbita que escutava na sua voz. Era uma ideia bonita – talvez não verdadeira, mas como poderíamos nós saber? É possível.

- Quem sabe? Talvez a intensidade do amor que você sente faça algo explodir a anos-luz daqui e crie uma estrela ou até um universo. Ou mais amor.

Vi seus lábios se curvarem num sorriso reconfortado e seus olhos se fecharem, talvez tentando acender uma luz algures.

Alguns minutos se passaram, e sua respiração se tornou mais profunda e compassada. Sua expressão se suavizava aos poucos, à medida que ela adormecia, dando lugar a um ar quase angelical. Ela parecia frágil de novo, porém de um jeito bom, como se estivesse tudo bem. Era óbvio que o que tinha acontecido, fosse o que fosse, tinha acontecido de noite, por isso fiquei feliz por ela estar dormindo – e, sobretudo, por ser um sono tão calmo.

Aproveitei para avisar a banda de que hoje não íamos poder ir ao estúdio, mas não expliquei tudo porque não sabia se Sarah iria gostar que eu desse a notícia agora a todos. Essa era uma decisão importante e eu não a queria forçar. Já a minha mãe, por outro lado, eu disse sim o que aconteceu, para ela entender porque eu não sabia quando voltaria a casa. Por mim, bem que poderia ficar toda a noite, mas eu sabia que isso não era certo. Suspirando, pousei o celular já em modo silencioso na mesinha que ficava entre a nossa espreguiçadeira e uma outra, e recostei mais a cabeça. Fechei os olhos e, a partir daí, não tive mais consciência de nada.


O som de uma porta de deslizar correndo pelos caixilhos e o movimento de alguém se remexendo nos meus braços me acordou lentamente.


Sarah. Eu estava em casa de Sarah, certo. Era ela quem estava encostada a mim, acordando também. O ar devia ter descido uns bons 10 graus desde que adormecemos e eu senti que talvez fosse isso o que tinha provocado o meu sonho terrível e a sensação de dor que ele deixou.

Sarah se sentou na espreguiçadeira, se soltando de mim de vez. Ela ajeitava os cabelos quase tão perfeitos quanto antes e abria os olhos lentamente. Fixei-os com atenção: eles estavam vermelhos. Tudo me veio como em um flash e eu entendi que o tal sonho terrível, dessa vez, fora a própria realidade.

Esfreguei a cara com as mãos, tanto para acordar de vez, como afastar os pensamentos mais negativos. Sarah já se punha de pé e eu olhei para a porta que nos tinha acordado. Louise estava de braços cruzados na soleira, observando nosso despertar com uma expressão que, pela falta de luz, eu não decifrei.

– Venham comer, meninos, o jantar já estava servido.

Olhei para o celular, confirmando minha suspeita de que já passava das oito da noite.

– Hã… Sarah, quer que fique para jantar? – perguntei, chamando o olhar de Sarah de novo para mim. Porém, antes que ela sequer cogitasse uma resposta, Louise já se adiantava.

– Claro que você fica, querido. Seus pais também estão aqui.

Olhei-a com confusão.

– Mas como…

– Eles apareceram há pouco.

– Sério? Quer dizer, se quiser, eu posso levá-los para casa. Não… não tem mal – falei mais para a Sarah – especialmente visto que Louise já dava costas e reentrava na casa.

– Não seja tonto, Tay – ela falou docemente, porém sem sorrir. Assenti, sabendo que isso não devia à falta de sinceridade. Me espreguicei sutilmente, logo verificando o celular pousado. 10 chamadas perdidas: 2 de meus pais e 8 da banda.

– O que foi? – perguntou ela, talvez vendo minha expressão e espreitando-me por cima do ombro.

– A banda.

– Oh não! Esqueci das gravações! – e começou a resmungar uma série de coisas incompreensíveis. Virei seu rosto gentilmente para mim com a mão direita.

– Calma. Eu avisei-os que não íamos.

– Oh.

– Mas não lhes disse o por quê. Não sabia se devia – ela sorriu, parecendo surpresa.

– Obrigada, Tay. Você parece ser meu anjo da guarda às vezes – ela suspirou e eu sorri – Realmente é melhor ser eu contar, não é?

– Eu acho que sim.

– Você acha que se lhes contar agora, eles vêm a correr para aqui?

– Hum… É bem provável.

– Então… – ela desviou o olhar para os próprios pés, parecendo envergonhada. – Então eu preferia contar só amanhã. Isso faz de mim uma má pessoa?

Levantei seu queixo com o indicador, fazendo com que ela me fitasse com seus olhos brilhantes demais.

– De todo! Você tem o direito de querer estar sozinha. É mais do que compreensível.

Ela sorriu de novo, de cada vez parecendo mais natural e mais sincera. Larguei seu queixo para passar antes ambos os braços ao seu redor. Ela encostou a cabeça no meu peito, suspirando, e eu acariciei sua nuca, tentando com tudo o que tinha lhe passar a segurança que eu sabia que ela necessitaria essa noite, depois de eu ir embora de novo. Deixei um beijo no topo da sua cabeça e senti suas mãos retribuírem as carícias nas minhas costas.

Foi ela que se afastou primeiro, provavelmente lembrando-se que tinha três adultos no interior nos esperando. Permiti que ela me guiasse até à cozinha, onde eles já se encontravam sentados a uma mesa posta. O cheiro inconfundível do macarrão com queijo da minha mãe enchia o cômodo e só isso já me deu outro alento.

Sarah foi cumprimentá-los, deixando beijos estalados em suas bochechas, e eu segui seus passos. Logo estávamos ambos sentados de frente para eles, enquanto Louise nos incluía, parecendo já mais animada, na conversa deles sobre coisas como a primavera que estava chegando e a decisão acertada do diretor da nossa escola de finalmente colocar um sistema eletrônico de monitorização de entradas e saídas. Amenidades.

O resto do jantar foi calmo e curto. Não sei o que meus pais disseram ou fizeram por Louise, mas ela realmente parecia ter recuperado alguma esperança. Além disso, reparei que os três olhavam para mim e para Sarah de vez em quando com uma expressão… estranha. Como se… Não, devem ser coisas da minha cabeça cansada.

No final do jantar – e dos meus pais muito insistentemente terem lavado a louça – despedimo-nos. Eu a grande custo, admito perfeitamente. Sei bem que a primeira noite é a mais difícil. Até já a imagino a levantar-se sorrateiramente a meio da noite e a deitar-se ao lado da mãe. Ou talvez seja o contrário.

De qualquer modo, meus pais me disseram que amanhã de tarde é o velório e o funeral. Eu sei que nem todos parecem se importar com Sarah o tempo todo, porém amanhã virão para apoiá-la. Porque, quando algo assim acontece a alguém como Sarah, é impossível não se sentir afetado.

É esse o tipo de pessoa que ela é.

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