Capítulo 34

Death is at your doorstep



POV Louise

Atirei um pouco mais de água fria contra minha cara já um pouco entorpecida. Isso não me aborrecia, porém. Minha mente estava no mesmo estado. Era assim desde… aquela noite. Como se nada disso estivesse realmente acontecendo, sabe? Como se a qualquer momento o despertador fosse tocar, me acordando e fazendo respirar fundo de alívio.

Mas eu não tinha direito a esse “está tudo bem, foi só um sonho”.

Porque não era um sonho. Era a realidade.

Eu tinha perdido o meu pai.

Minhas mãos responderam ao ímpeto das lágrimas com outra porção de água atirada contra a minha cara.

Fora desse banheiro, estavam mais de 50 pessoas. A maioria chorava a morte do Sr. Bayley; uma pequena minoria – que se restringia à nossa pequena família – chorava a morte de Richard. Mas eu, eu era a única ali que chorava a morte do meu pai.

Cold is the water,
It freezes your already cold mind,
Already cold, cold mind.
And death is at your doorstep,
And it will steal your innocence,
But it will not steal your substance.
(Fria é a água,
Ela congela sua mente já fria,
Sua mente já fria, fria.
E a morte está à sua entrada,
E ela irá roubar sua inocência,
Mas não a sua substância.)

Enquanto outro jato de água era lançado à minha cara, me ocorreu que isso não era verdade. Eu não era a única que tinha perdido seu pai. Havia ali outra menina – muito parecida comigo quando tinha a sua idade – que também estava lidando com a perda de uma figura paternal.

A relação entre eles era algo em que eu pensava muitas vezes, mas só de vez em quando – quando os apanhava tendo uma conversa íntima, ou quando meu pai lhe dava um sermão que eu não tinha a coragem de dar – eu percebia do quanto ela era parecida a uma relação de pai-filha; o quanto meu pai tinha sido um pai também para Sarah. E o quanto ela estaria sofrendo agora.

Foi isso que me deu coragem para, finalmente, abrir a porta do banheiro da casa funerária, pouco me importando com a vermelhidão que deveria estar colorindo toda a minha cara.

Porque entre mim e Sarah havia uma diferença: eu estava perdendo meu segundo progenitor, mas ela nunca tinha perdido sua mãe. E não seria agora que eu a abandonaria.

But you are not alone in this,
And you are not alone in this.
As brothers we will stand
And we’ll hold your hand.
Hold your hand.
(Mas você não está sozinho nisso,
Você não está sozinho nisso.
Como irmãos nos levantaremos
E seguraremos sua mão.
Seguraremos sua mão.)

Apoiei meus pés firmemente no chão, fechando a porta atrás de mim. Três mulheres da idade do meu pai – cujas caras eu reconhecia, mas cujos nomes eu não lembrava nem estava com vontade de tentar lembrar – levantaram o olhar para mim de imediato, abandonando a conversa que até aí mantinham. A pena se acendeu quase automaticamente em seus olhares e elas se apressaram a me abraçar e dar os seus pêsames. Com sorrisos forçados, eu agradeci e me desculpei rapidamente, dizendo que tinha que falar com minha filha – o que era verdade, mas também o que me livrou de um bom quarto de hora escutando o quanto elas lamentavam o que acontecera e como estavam tristes por isso.

Virei costas às três, podendo ainda escutar quando elas terminaram suas despedidas apressadas e retornaram a seus cochichos. Caminhei lentamente sem destino definido, procurando Sarah com o olhar. Custou um pouco, mas fui encontrá-la num canto mais afastado do salão, conversando com seus amigos. Me aproximei calmamente, pensando em como cada um daqueles meninos era uma benção e o quanto eles tinham mudado Sarah durante esses 6 meses. Como ela estaria agora se não tivesse o seu apoio?

Parei a uma distância razoável, mas suficiente para que eles me notassem. Mesmo assim, Sarah foi a primeira a prender o meu olhar, entendendo de imediato o que eu queria ali. Ela falou algo para o grupo que, aí sim, me viu e acenou sutilmente. Eu retribuí, enquanto Sarah se encaminhava para mim e prendia seu braço no meu. Segurei sua mão, sorrindo muito calmamente para ela e apreciando sua face bonita. Ela podia não conseguir notar, mas eu distinguia perfeitamente cada um dos traços que não vinha da família que estava agora reunida naquele salão.

Começamos a caminhar lentamente, nos dirigindo sabe Deus onde, apenas segurando o braço uma da outra e aproveitando esse tempo do lado de alguém que entendia perfeitamente o que se passava – ou quase. Eu sentia uma dor que Sarah levaria ainda alguns anos a descobrir, vendo sua cara tão pálida e os olhos inchados e avermelhados. Lembrava-me a época em que ela contraiu sarampo, com cinco anos. Por mais que meus pais dissessem que era normal, eu ainda ficava aflita toda a vez que ela tossia. Ainda queria chorar junto com ela sempre que a comichão ficava mais intensa. E ainda me perguntava toda a noite o que tinha feito errado.

Ela era meu bebê, ora, meu dever era protegê-la!

E dessa vez? Eu evitava pensar nisso, mas eu sabia que tinha minha parte de culpa nisso. E ver sua cara delicada, agora mais crescida, mas sentindo com certeza mais dor que quando tinha cinco anos… Tudo isso fazia com que eu não pudesse ignorar mais a verdade.

E a verdade é: se eu tivesse escolhido um caminho diferente, Sarah estaria apenas chorando a perda de um avô e não de um pai.

And you are the mother,
The mother of your baby child,
The one to whom you gave life.
And you have your choices,
And these are what make men great,
His ladder to the stars.
(E você é a mãe,
A mãe do seu bebé,
Aquele a quem você deu a vida.
E você tem as suas escolhas,
E estas são o que fazem homens grandes,
A sua escada para as estrelas.)

Passei a mão livre pela cara, tentando afastar esses pensamentos de novo. Eles surgiam muitas vezes, mas nem por isso eu sabia lidar melhor com eles. Tudo o que eu podia dizer a mim mesma é que, se as coisas tinham se desenrolado assim, era porque era para ser. E eu estava fazendo o melhor que podia, afinal! Eu não era tão nova assim quando a tive, mas era tão imatura. Havia tanta coisa que eu nem imaginava e que tive que aprender com a experiência… E sozinha, na maior parte das vezes. Como eu poderia prever que um dia me arrependeria?

Balanceei a cabeça, sentindo a mão de Sarah apertar mais a minha. Meu olhar se encontrou instintivamente com o dela, achando, a meio caminho, um sorriso reconfortante. Essa era sempre a verdadeira recompensa, sabe? Apesar de todas as ingratidões que vinham com o trabalho de mãe, tudo valia a pena quando via o amor de Sarah refletido num sorriso ou num olhar. Era por isso que eu tinha tomado todas aquelas decisões, afinal. Para que ela tivesse uma infância feliz e equilibrada e fosse essa adolescente tão linda e talentosa, hoje. Se eu tivesse escolhido o caminho oposto, talvez ela estivesse chorando não pela figura paternal que perdeu, mas pelo pai que nunca teve.

O que era preferível: ter amor e perdê-lo, ou nunca havê-lo tido em primeiro lugar? Pode parecer uma questão difícil – um dilema, até – mas eu sei que o amor é algo precioso, algo que devemos agarrar sempre que pudermos. E por isso, eu não me podia arrepender pelo que tinha feito.

Eu tinha feito o certo.

E no exato momento em que um suspiro de alívio se soltava da minha garganta, senti Sarah estacar do meu lado, como se paralisasse. Eu segui seu olhar estático, preocupada, mas logo estava congelando também, ao mesmo tempo que sentia uma golfada de culpa fazer meu estômago se revirar.

O que Brian – Brian, que ironia é essa, meu Deus?! – estava fazendo ali?

And I will tell the night,
Whisper "Lose your sight"
But I can't move the mountains for you
(E eu direi à noite,
Murmurarei “Perca sua visão”
Mas eu não posso mover montanhas por si)


Sábado, 3 de Abril
Taylor

Acordei esta manhã sabendo que esse seria um sábado diferente. Sabia-o quando o despertador tocou, sabia quando me enfiei debaixo do chuveiro, e sabia quando vesti uma camisa preta com o pólo preto por cima também. Mas foi apenas quando o carro conduzido pelo meu pai chegou à casa funerária mais conhecida de Franklin e eu vi a quantidade de automóveis que já estavam estacionados por ali que eu percebi o quão diferente iria ser.

Mais do que isso: foi só quando nos apeamos – eu, minha mãe e meu pai; Justin tinha um exame hoje – e eu notei a garota de vestido preto que se enroscava nos próprios braços, sentada num banquinho em frente à casa funerária, que eu percebi o quão terrível seria esse sábado. Não foi preciso mais que meio segundo para saber que era Sarah, nem para sentir tudo voltar em força: a dor, o cansaço, a impotência, mas também a vontade de fazer tudo o que pudesse para ajudar. Foi sobretudo essa última parte que me levou a chegar mais perto dela rapidamente.

– O que faz uma mocinha tão bonita exposta a esse frio sozinha? – minha voz pareceu quase assustá-la, provavelmente acordando-a de pensamentos profundos. Mas logo um sorriso aliviado curvou seus lábios, e ela estava se levantando e me abraçando. Deixei que meus braços a apertassem fortemente até ela, vários segundos depois, se desprender e passar a abraçar meus pais. Eles trocaram algumas palavras antes do casal dar um “até já” e seguir para dentro, nos deixando sozinhos na rua fria.

– O que você está fazendo aqui fora, Sarah? – voltei a insistir, mas meigamente. Ela me olhou, completamente desanimada.

– Estou… respirando – e fechou os olhos, puxando o ar com dificuldade para seus pulmões, que deviam estar queimando pelo frio. Eu não podia fingir que não entendia o que isso queria dizer: ali fora estavam uns 20 carros já estacionados, lá dentro com certeza estariam mais pessoas que isso. E se Sarah nunca fora muito boa com grupos grandes, agora devia estar mais difícil que nunca.

– Respirando, hã? – lancei uma golfada de ar contra sua cara, observando o fumo que a condensação da respiração causava. Ela abriu os olhos e me encarou, ligeiramente divertida, bastante curiosa para ver o que eu iria inventar de seguida. – Tente lançar seu fumo mais longe, então.

Enchi os pulmões de ar e, de seguida, empurrei todo o fôlego para fora, enquanto ouvia sua curta risada.

– Tay, isso é muito idiota!

– É nada! É divertido! Venha, faça aqui do meu lado, vamos – puxei-a para o meu lado, virada na mesma direção que eu. Ela ria muito fracamente e negava com a cabeça, mas acabou por fazer o que eu pedia. – Aos 3. Um, dois... – enchi o peito de ar e ela me imitou – três.

Soltamos todo o ar fora, mas, daquele ângulo, ficava difícil julgar a distância da respiração. Sarah me olhou, de sobrancelha levantada e um meio sorriso nos lábios.

– Não deu muito pra ver, né? – ela negou, ainda sorrindo. – Vamos de novo.

Voltamos a repetir todos os movimentos, mas o resultado foi inconclusivo na mesma.

– Tay, isso nunca vai dar certo! – ela afirmou, rindo e mal sabendo que era precisamente o contrário, porque o objetivo ali não era avaliar quem respirava até mais longe (se é possível avaliar isso), mas sim fazê-la rir.

– Tá, então que se dane a competição e vamos apenas fingir que fumamos.

Ela riu mais abertamente e concordou, imitando meus gestos de fumador-que-pretende-ser-atraente-mas-falha-miseravelmente.

– Fingir fumar deve ser bem mais divertido que fumar mesmo – seu comentário fez-me rir.

– Deve mesmo. Hey, sabe o que eu sempre quis fazer? – ela negou, continuando a segurar seu cigarro imaginário muito elegantemente entre o indicador e o dedo médio. – Aquelas argolas super legais que as pessoas que fumam charutos fazem a toda a hora, sabe?

E olhei em frente, tentando inventar um movimento com a língua que criasse um buraco no meio da golfada de ar, embora já soubesse que não ia conseguir. Foi a falta de risadas da minha cara de idiota que me alertou para a probabilidade de algo estar errado. Olhei de novo para Sarah, encontrando lágrimas correndo até ao sítio onde ainda agora estava um sorriso. Nem dei permissão a que meus braços se movessem, e já eles estavam a puxando contra mim, minhas mãos afagando seu cabelo e costas, as suas agarrando meu casaco.

– Shhhhh… - eu fazia, tentando frustradamente acalmá-la, enquanto seus soluços começavam a ecoar pela rua vazia – Shhh, Sarah… eu estou aqui.

Ficamos ainda uns minutos abraçados, Sarah se acalmando muito lentamente. Eu não perguntei, mas deduzi que o Sr. Bayley fosse uma daquelas que fumam charutos e fazem argolas legais. Claro que eu não sabia isso, mas não pude evitar me sentir um idiota por ter estragado tudo tão facilmente. Por outro lado, isso me fez imaginar a quantidade de coisas pequenas que farão Sarah desabar nos próximos tempos. Sabe, aqueles momentos em que você percebe, como se fosse pela primeira vez, do vazio que ficou no lugar que aquela pessoa ocupava na sua vida.

Uma cadeira vazia, um piano silencioso, um charuto por fumar.

Coisas pequenas, hábitos quase instintivos… Algo de que não sabíamos que iríamos sentir falta, mas que causavam mais saudade que tudo o resto.

Sarah finalmente se sentiu pronta para me soltar e afastou-se lentamente. Porém, segurei ainda seu rosto, deixando um carinho na sua bochecha. Ela fechou os olhos e suspirou, falando em seguida.

– Acho que está na altura de entrar.

Assenti, mas deixei que fosse ela a nos conduzir para o interior. Ela suspirou mais uma vez – talvez se preparando – e assim fez.

Como eu imaginava, o salão não estava propriamente cheio, mas sim bem preenchido. Olhei para o relógio antigo que decorava uma parede próxima, constatando o que já esperava – faltava um quarto de hora para as nove, altura em que o velório começaria, digamos, “oficialmente”. Às 10h seria o funeral na igreja e, depois, finalmente o enterro. No total, tínhamos cerca de três horas excruciantes pela frente. Suspirei.

Várias pessoas se iam aproximando. Umas prestavam suas condolências a Sarah – essas normalmente ficavam pouco e, enquanto isso, seu olhar transmitia pena –, enquanto outras iam diretas ao abraço, comentando como ela estava mais bonita, mais alta, mais magra. Perguntavam como iam os estudos, perguntavam o que ela andava fazendo de interessante, e algumas perguntavam quem eu era. Foi assim que fui apresentado a três primos, duas tia-avós e um tio-avô. Também foi assim que descobri que Louise é filha única e que, por isso, Sarah não tem tios nem primos diretos. Elas são a única família direta do Sr. Bayley e, por isso, era a elas que todas as pessoas que queriam deixar seus pêsames se dirigiam. Contudo, pelo olhar de Sarah passados uns meros cinco minutos, eu entendi que ela passaria esse cargo ao próximo com agrado.

Mesmo assim, passados outros cinco minutos, nossos amigos estavam chegando ao local, fazendo com que Sarah se iluminasse um pouco. Primeiro, chegou Lisa com os Srs. Cohen, depois Hayley e Jeremy com suas mães, Jane com a sua também e, por fim, chegaram os Farro. E quando eu digo que chegaram os Farro…

Eu digo que chegaram os Farro.

– Sarah – Zac murmurou, à medida que se aproximava dela e a puxava para um abraço demorado. Assim que eles se afastaram, porém, os Srs. Farro chegaram mais perto, dando seus pêsames à amiga do filho. Ela agradeceu e cumprimentou-os e eles afastaram-se, procurando por Louise. Um minuto depois, chegava Nate, de blazer e uma expressão compreensiva.

– Sarah… lamento muito – ela assentiu com um sorriso breve e se deixou levar pelo curto abraço do mais velho. – Tem aqui outra pessoa que gostaria de falar consigo.

E, como num passe de mágica, o realmente pequeno Jonathan surgiu de trás dele, parecendo um pouquinho assustado, mas também decidido a ser valente agora que estava frente-a-frente com Sarah.

– E-eu lamento muito… Mas mamãe sempre diz que morrer não é desaparecer e que cada estrela é uma pessoa que entrou no Céu… Você viu se apareceu uma nova lá? – Sarah sorriu e negou. – É, elas são muitas para contar… Mas eu aposto que apareceu!

 Eu também aposto que sim, Jon. Obrigada por me fazer sentir melhor – Sarah falou com uma sinceridade que fez o garoto sorrir e a abraçar. Nate pegou-o pela mão e conduziu-o para um outro lugar do qual não tivemos noção, porque a chegada de uma outra pessoa exigia nossa atenção. Josh aparecia, pela primeira vez desde a partida do aeroporto.

– Sarah, eu… – ele começou, se debatendo em busca das palavras certas, claramente atrapalhado, porém o abraço apertado de Sarah não o deixou continuar. Ela chorava copiosamente, Josh também derramava uma ou outra lágrima, e eu próprio tentava engolir o nó na garganta, só de testemunhar a cena.

O aperto durou ainda algum tempo, o que fez Jeremy soltar um “ah, não aguento mais!” e se lançar em direção aos dois, começando um abraço de grupo talvez inadequado para a situação aos olhos de praticamente todas as pessoas naquele salão, mas completamente certo para nós. Era o que todos precisávamos naquele momento, uma perfeita amostra de que tudo era ultrapassável, e que, apesar de todas as dificuldades, tínhamo-nos uns aos outros.

Foi como uma ótima recompensa depois de dois dias devastadores e do início do que parecia vir a tornar-se num terceiro. Uma pontinha de esperança, como que dizendo “não desista já”. Afinal, há sim soluções para coisas que pareciam quebradas de vez. E Sarah também irá conseguir ultrapassar essa perda. Foi esse abraço que mo provou.

Mesmo assim, uma hora ou outra tivemos que nos afastar e ficamos apenas conversando. Josh prendeu nossa atenção, contando como eram as coisas em Baltimore e falando sobre seus colegas e as pessoas que já conhecia. Ele parecia estar gostando e a estadia com certeza lhe tinha feito bem… mas, por outro lado, eu sentia saudades dele e sabia que todos ali passavam pelo mesmo – sobretudo o próprio. E, mais uma vez, senti que era uma benção ele estar ali, nesse dia, conosco, o passado para trás e, quem sabe, um futuro melhor pela frente.

Já passava das nove horas quando uma senhora subiu no palanque e pediu a todos para se sentarem. Sarah e sua família ocuparam a primeira fila da série de cadeiras já dispostas em retângulo, direcionadas a um pequeno palco, onde estava não só o palanque, mas também um bonito piano de cauda e uma enorme foto do Sr. Bayley, tocando um piano parecido. Nós ocupamos a segunda fila a contar da frente, sendo que fiquei sentado exatamente por trás de Sarah. A senhora pigarreou, prendendo nossa atenção.

– Bom dia a todos… Eu queria começar por fazer notar a presença de tanta gente aqui, hoje. É certo que a causa para essa reunião alargada não é das mais felizes, mas também não é das mais tristes. O que vimos lembrar aqui hoje não é uma vida para chorar, mas sim para ser celebrada. Uma vida que tocou essas todas, direta ou indiretamente, que hoje se recordam dela com apreço, com carinho e com muito respeito. Richard Bayley era assim, um homem de impor respeito – vários risos ecoaram, provavelmente devido à expressão engraçada que a locutora empregava e a um bom conhecimento do temperamento do Sr. Bayley. – Eu lembro de ser uma menina pequena e de ter muito medo dele. Com a idade, porém, o tio Richard se tornou não numa figura de meter medo, mas de provocar admiração. Ele era um homem forte, um homem decidido, mas, sobretudo, um homem preocupado. Um homem que se preocupava. Ele me ensinou piano durante anos, mas ele me ensinou muitas outras coisas durante toda a vida. Senão fosse pelo tio Richard, talvez eu não fosse formada hoje, e assim, também não teria conhecido meu marido, nem teria meus lindos filhos. E isso não é algo para chorar e muito menos para esquecer: é algo pelo qual dar graças todos os dias.

“Isso é o que eu proponho que façamos nesse memorial. Não nos lamentemos ou choremos nossa perda; demos antes graças pelo ganho que foi ter Richard Bayley nas nossas vidas. Obrigada.

A prima de Sarah desceu do palanque, dando lugar a um senhor de aspeto mais velho. Conforme ele começou a falar, episódios de infância foram sendo partilhados conosco. Entendi que aquele era o irmão mais novo do Sr. Bayley, o que explicava o brilho de admiração que enchia seu olhar enquanto repassava as melhores memórias que tinha do irmão. Toda a primeira fila chorava e ria com intensidade, levando a que várias pessoas na restante plateia se permitissem fazer o mesmo. Isso fez com que todos se sentissem mais confortáveis e incluídos. Subitamente, aquilo era menos uma cerimônia oficial e mais uma reunião muito necessária… uma espécie de terapia de grupo. E fazia-nos bem.

O próximo a subir ao palco foi o tio-avô que eu tinha conhecido, que também partilhou vários episódios de infância, mas mais ainda da idade adulta. O melhor amigo do Sr. Bayley seguiu-se, lembrando também a avó de Sarah, Theresa, ao contar a história dos dois. Essa foi das homenagens que mais lágrimas causou. Mas, claro, nenhuma se pôde, de perto ou longe, comparar com a mais especial de todas: depois de tantos outros familiares terem dado seu contributo para o memorial, incluindo a própria Louise (que não conseguiu falar muito, as emoções levavam continuamente a melhor), chegou a hora de encerrar a cerimônia. Sarah se levantou, caminhando pausadamente em direção ao palco.

– Depois de… tantas memórias tão bonitas, engraçadas ou… importantes, sobretudo, que foram partilhadas aqui, chegou… - ela parou, respirando, e logo retomando com um tom um pouco mais choroso – chegou a hora de terminar esse memorial e… c-começarmos a d-despedida – nova paragem, nova pausa para respirar. Ela levantou a cabeça de novo e passou os dedos pelos olhos. – Me pediram para ser a última, porque fui a última a entrar na vida do avô. Mas eu disse que eu não queria falar, mas sim fazer algo muito querido ao avô: tocar piano. A música que eu escolhi era, como Anthony contou, “a” música dos meus avós – mesmo que não por muito tempo. Qu-quando a avó Theresa m-morreu… Eu lembro p-perfeitamente de ele não dizer nada no memorial, e apenas t-tocar a música para ela. Essa f-foi a última vez que ele a t-tocou. Mas hoje, eu quero t-tocar a música p-por eles, sabendo que o-onde quer que eles estejam, estão juntos de novo.

Todos aplaudiram, chorando junto com Sarah, que respirava a custo. Mesmo assim, ela se sentou no banquinho em frente ao piano de cauda, passou as mãos pelos olhos de novo, ajeitou a pauta no pedestal, respirou fundo e… tocou.

And I'd give up forever to touch you
'Cause I know that you feel me somehow
You're the closest to heaven that I'll ever be
And I don't want to go home right now

(E eu desistiria da eternidade para te tocar
Porque eu sei que você me sente de algum modo
Você é o mais próximo de paraíso que eu alguma vez estarei
E eu não quero ir para casa agora)


And all I can taste is this moment
And all I can breathe is your life
And sooner or later it's over
I just don't wanna miss you tonight

(E tudo o que posso saborear é esse momento
E tudo o que posso respirar é a sua vida
E mais tarde ou mais cedo, isso acaba
Eu apenas não quero sentir sua falta esta noite)

Seus dedos corriam pelas teclas, não do jeito decidido e familiar de Hayley, mas de uma forma calma e ponderada, normal para quem não está habituado a tocar piano. O que, de certo modo, só deixava tudo mais significativo. Eu nem sabia que ela tocava!, e olhem só, ali estava ela, com certeza nervosa, com certeza quase sufocando de dor, mas tocando de qualquer jeito. Tudo pelo avô.

And I don't want the world to see me
'Cause I don't think that they'd understand
When everything's meant to be broken 
I just want you to know who I am

(E eu não quero que o mundo me veja
Porque não acho que eles irão compreender
Quando tudo serve para ser quebrado
Eu apenas quero que você saiba quem eu sou)

And you can't fight the tears that ain't coming
Or the moment of truth in your lies
When everything feels like the movies
Yeah you bleed just to know you're alive

(E você não pode lutar contra as lágrimas que não chegam
Ou o momento de verdade nas suas mentiras
Quando você se sente como num filme
Yeah, você sangra apenas para saber que está vivo)

And I don't want the world to see me
'Cause I don't think that they'd understand
When everything's meant to be broken 
I just want you to know who I am

(E eu não quero que o mundo me veja
Porque não acho que eles irão compreender
Quando tudo serve para ser quebrado
Eu apenas quero que você saiba quem eu sou)

Ela continuou corajosamente, tocando um solo adaptado do original, feito para guitarra, mas que ficou mais emotivo no instrumento de teclas. Mais uma vez, seus dedos não fluíam naturalmente, mas tocavam cada uma daquelas notas com uma intenção inigualável, deixando toda a música carregada com a saudade que ela já sentia; com a dor que a perda provocou; com o amor que, no meio de tudo isso, não desapareceu… Com o adeus que, afinal de contas, precisava ser dito.


And I don't want the world to see me
'Cause I don't think that they'd understand
When everything's meant to be broken 
I just want you to know who I am

(E eu não quero que o mundo me veja
Porque não acho que eles irão compreender
Quando tudo serve para ser quebrado
Eu apenas quero que você saiba quem eu sou)

And I don't want the world to see me
'Cause I don't think that they'd understand
When everything's meant to be broken 
I just want you to know who I am

(E eu não quero que o mundo me veja
Porque não acho que eles irão compreender
Quando tudo serve para ser quebrado
Eu apenas quero que você saiba quem eu sou)

I just want you to know who I am
I just want you to know who I am
I just want you to know who I am

(Eu apenas quero que você saiba quem eu sou
Eu apenas quero que você saiba quem eu sou
Eu apenas quero que você saiba quem eu sou)

Escusado é dizer que esse foi o momento mais intenso de toda a celebração. Os soluços tinham ecoado durante toda a música e, agora que ela terminara, ecoavam ainda, gradativamente mais intensos. Sarah finalmente quebrou, descendo rapidamente do palco, em direção aos braços da mãe. Hayley chorava do meu lado, apertando meu braço. Peguei sua mão e tentei sorrir para ela, não conseguindo, porém, segurar algumas lágrimas teimosas. Josh, do outro lado dela, pegou sua outra mão, prendendo sua atenção de vez. Sorri de novo, mas por outros motivos, sentindo as lágrimas rolarem cada vez mais impiedosas. Tentei lutar contra o ímpeto, esfregando a cara e respirando fundo algumas vezes. Parecia resultar.

– Hm-mm – uma voz pigarreou de cima do palanque. Era a sobrinha do Sr. Bayley que tinha dado início ao memorial. Sua voz estava mais chorosa agora, pude notar. – Espero que todos tenham aproveitado esses momentos para relembrar as memórias mais queridas e, muitas vezes, quase esquecidas, de Richard. Eu sei que eu aproveitei.

“O funeral será na Igreja São Philip, como decerto já sabiam. Porém, como o padre que irá celebrar a cerimônia teve um imprevisto, ela terá que começar um pouco mais tarde. Esperamos então que às 10h30 todos se encontrem reunidos conosco na igreja.

Houve alguma agitação e várias pessoas se levantaram, mas foram poucas as que realmente saíram. De certo modo, as coisas voltaram à configuração de antes do memorial: as pessoas se reuniam em pequenos grupos pelo salão, conversando – mas agora mais animadamente, como se lhes tivesse sido lembrado que podiam estar felizes pela importância que o Sr. Bayley tivera nas suas vidas.

Nosso pequeno grupo também se levantou e se dirigiu a um canto recatado do salão. Sarah rapidamente nos achou, já mais calma.

– Você foi muito incrível, linda – Jane começou, conseguindo o apoio de todos ali e fazendo Sarah corar não apenas de choro agora.

– Foi mesmo! Me arrumou a um canto!

– Ah, Hayley, por favor! Eu fiquei praticamente martelando as teclas! Mas acho que o que importava não era isso, então acho que fiz o certo. E vou continuar a achar até alguém exigir que eu pague a conta do aparelho de audição.

Nós rimos um pouco. Era a primeira piada que Sarah fazia nesses últimos três dias. Acho que estava mais certo em relação a considerar o memorial uma terapia de grupo do que pensava. Todos ali pareciam mais leves – não completamente recuperados, mas sim um misto entre desgostosos, saudosos e felizes. E era assim que deveria ser, afinal. Richard Bayley tinha sido uma pessoa incrível e merecia isso.

– Fez o certo, sim. Mas eu não sabia que você tocava piano – Lisa verbalizou o que todos ali pensavam, incluindo eu.

– Acho que ninguém sabia.

– Meu avô era completamente apaixonado pelo piano – vocês ouviram minha prima falando que ele lhe ensinou. Ele vivia fechado naquela cave, tocando sempre que podia. Eu tinha que aprender alguma coisa, né?

– Minha mãe adora pintar e eu pareço uma criança de três anos desenhando, então acho que não – realmente não era difícil imaginar a Sra. Cohen pintando. Agora Lisa… digamos apenas que sua tentativa de desenhar uma mão gesticulando o símbolo do rock acabou parecendo um chapéu com chifres.

– É, vamos voltar à teoria de que você é incrivelmente talentosa – Sarah, como todos nós, gargalhou automaticamente da tirada, acompanhada de piscadela, de Jeremy.

– Voltem, então. Não posso impedir que vocês vivam no mundo dos sonhos.

– Não, senhora! Você é quem vive no mundo dos sonhos, sonhando que não é talentosa.

– Jeremy… Menos, né?

– Não, não – Zac interrompeu a discussão entre os dois, com a maior cara de inspirado – olhem só: she lives in a fairytale… paparapapara…

Enquanto alguns concordavam que o trechozinho que Zac tinha acabado de cantar realmente daria uma boa música, Sarah me olhou com a maior cara de “eles enlouqueceram?!”. Ri um pouco – afinal, ela já sabia a resposta. Era o início de uma discussão musical.

– Hey, guys, vou falar com minha mãe, ok? – seguimos o olhar de Sarah, encontrando Louise a alguns metros de nós. Assentimos para uma e sorrimos para outra, e logo a discussão musical, momentaneamente interrompida, tinha voltado. Rolei os olhos, observando Louise e Sarah se afastarem muito calmamente. Elas não pareciam dizer nada, mas eu sabia que isso também era importante. A verdade é que apenas elas podiam se entender mutuamente. E a companhia uma da outra lhes faria bem.

Estava prestes a voltar minha atenção para a conversa que se desenrolava entre o grupo quando as vi estacarem, inertes. Parecia terem visto um fantasma.

Só mais tarde entendi o quão certo estava nesse ponto.

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