Capítulo Bónus

7 anos antes
L.A.


Louise estava deitada na enorme cama macia, recostada nas incontáveis almofadas coloridas, deliciada com a leitura do livro que, tal como todas estas coisas, também pertencia àquela casa. Quanto ao livro que havia trazido consigo, praticamente devorara-o. Pronto, então estava lendo bastante. Como se ela não fizesse isso no dia a dia de qualquer forma. A questão é que, em L.A., ela tinha mais tempo livre… ou assim ela dizia para si mesma.

Uma batida suave na porta interrompeu a cena, descrita em palavras, que se desenrolava na sua imaginação. Como todos os mais novos haviam saído para jantar e, mais tarde, “aproveitar a noite”, só podia ser uma pessoa.

- Sim, Brian? – sua voz não fora mais que um murmúrio, mas isso bastara. Ele colocou a cabeça para dentro da porta.

- Oi borboleta, ‘tá a fim de comer o quê? – ela rolou os olhos ao som do apelido, mas tentando não ficar verdadeiramente irritada com isso. Ele estava de fato se esforçando, esse era um ponto com o qual ela tinha que concordar.

- Hmm… O Sr. Kamoshi ainda faz entregas daquele sushi impagável?

Brian soltou uma gargalhada jocosa, porém delicada. Juvenil. Louise não se conseguiu refrear de desenhar um sorriso.

- Ele fechou tem 5 anos já – face ao suspiro desconfortado da mulher, ele acrescentou, com um encolher de ombros. – A economia é uma filha da mãe.

- É… Então podemos apenas encomendar comida tailandesa? – Brian olhou Louise durante alguns segundos, sorrindo. Depois assentiu.

- Com certeza, minha cara Rapunzel. Pretende comer enclausurada nessa torre de marfim? – ele gesticulou em direção ao quarto, abarcando-o por inteiro. – Eu sei que é bem agradável e tudo o mais, mas os aposentos inferiores também merecem sua atenção.

O que provocou o riso de Louise não foram tanto as palavras formais, mas sim o tom afetado e imponente que Brian, sem qualquer esforço, impôs a elas. Em tempos que ela raramente se atrevia a recordar, ele sonhara ser ator. Porém, a vida dá muitas voltas. E, para dizer a verdade, talvez seu emprego atual não estivesse tão distante da sétima arte quanto isso. Só que por todos os motivos errados.

- Louise? – Brian recuperou a atenção dela, a qual, excetuando em assuntos relacionados com o emprego, tinha bastante tendência a divagar a toda a hora. Ela suspirou e formou outro sorriso. – Vamos descer?

Brian falava com ela num tom que a acusava, risonhamente, de estar com a cabeça noutro lugar. Uma acusação algo verdadeira: desde que chegara àquela cidade, não conseguia repudiar o sentimento de que regredira no tempo… com todas as implicações boas e más que isso comportava. Quando os garotos estavam lá, eles formavam uma espécie de bote salva-vidas que a mantinha presa à realidade. Sem eles, porém, corria sérios riscos de se afogar num mar de memórias.

E, à medida que descia a escadaria da casa em direção à cozinha, seguindo no encalço de Brian – que tivera o bom senso de seguir na frente –, elas estavam mais vívidas que nunca. Repassou os olhares dele, os sorrisos, a gargalhada juvenil que ainda há pouco soltara… Tudo achava seu eco no passado que ambos tinham partilhado. Borboleta.

A inundação começara. Restava saber quais os estragos que faria.

Gastei mais que as palavras
Em sonhos que eram teus
E do pó que pisavas
Fiz estradas e céus

Com esse último pensamento pesando no seu peito, as lágrimas afloraram naturalmente aos olhos cor de chocolate de Louise, que já tinham visto tanta coisa despropositada e injusta acontecer. A visão turva – talvez tanto quanto a alma igualmente turva – fê-la falhar o degrau e ir de encontro às costas largas de Brian. A mão dele pousou automaticamente em cima da dela, que estava fixada em torno do seu ombro, procurando o equilíbrio que não achava.

Inventei ventos e ruas
Fiz-me louco nos teus braços
E das minhas frases nuas
No teu corpo escrevi laços

Brian voltou-se para ela. Com o degrau entre eles, suas alturas estavam quase niveladas: demorou apenas alguns segundos para que Brian notasse os pequenos trilhos de água marcados na face que tão bem conhecia.

- Louise—

- Como foi que acabamos aqui, Brian?

E se partires de manhã
Deixa a sombra e o chão
Esta noite eu e tu
Somos a palma e a mão

A voz dela, forçada por entre soluços, denotava todo o sofrimento que calara nos últimos 14 anos. Mais que toda a raiva e frieza que exteriorizara quando Brian reaparecera, ela precisava deixar que toda essa dor arejasse e visse a luz do dia; ela precisava que toda essa dor não pesasse mais todo o santo dia no seu peito. Que não tornasse sua vida amarga como invariavelmente tornava. Que não lhe desse vontade de chorar desse mesmo jeito durante tantas e tantas noites em claro. Ela precisava que essa dor deixasse de doer. Mas ela não sabia como.

Brian tentou fazer com que a intensidade daquela troca de olhares deixasse latente todas as palavras que ele não conseguia encontrar. Seu polegar procurava, em vão, limpar as gotas que teimavam em cair desses olhos chocolate que, noutros tempos, foram tão doces quanto sua cor sugeria. Não eram mais. E Brian sabia que era ele a principal razão por detrás desse crime.

E no nome que te dei
Tu já tens onde acordar
Amanhã eu não sei
Quem te vai abraçar

Cerrou também seus olhos – esses, azuis como o mar que ambos tinham visitado nesse mesmo dia –, tentando engolir a dor e as lágrimas que o sofrimento de Louise reavivara. A culpa. O medo. A mágoa. Ele fora o principal responsável pela sua própria desgraça e, pior do que isso, pela amargura daquela garota tão doce por quem se tinha apaixonado. Num ímpeto incontrolável, ele encostou sua testa na dela, desejando por tudo não ter cometido tantos erros graves. Não ter sido tão cego ao ponto de trocar a felicidade viva por promessas vazias.

Talvez eles pudessem fazer o tempo recuar essa noite.

E então voltas do nada
Sem pecado ou perdão
Esta noite eu e tu
Somos a palma e a mão

Essa única sugestão incerta tornou-se um íman entre os dois, atraindo lábios, mãos, sentimentos há muito enterrados sob camadas de ódio, pena, culpa e dor. A velha paixão reavivou-se, irrefreável, sacudindo de si mesma o pó de que esses 14 anos a tinham coberto. E quem poderia ter previsto que, 14 anos depois, eles ainda se conhecessem tão bem? Todos os recantos, toques, sensações… todo o jeito que eles tinham de se amar era como um poema que, uma vez memorizado, jamais se esquece. Pode parecer ter sido esquecido, mas basta a pequena faísca da memória, avivada por um único sentimento, e tudo retorna com a mesma impetuosidade.

Eles eram um poema um para o outro. Como poderiam algum dia esquecer-se disso? E, no entanto, como se tinham machucado mutuamente…

Vem de longe o teu caminho
E em mim faz sempre verão
Esta noite eu e tu
Somos mais do que a razão

Porém, no momento em que os lábios de ambos se provavam com tanta ferocidade, e as mãos arrancavam indescriminidamente peças de roupa, procurando encontrar aquele outro local onde, tantos anos antes, eles tinham amado pousá-las; nesse momento, tanto um como o outro voavam muito longe de qualquer raciocínio, medo ou mágoa. Havia só, entre eles, caminhos de amor que já tinham trilhado tantas vezes e que, de um momento para o outro, pareciam demasiado apelativos para ignorar. Talvez, quem sabe, se tentassem apurar a verdadeira motivação por detrás de tudo isso, fossem encontrar réstias de um amor machucado e deitado fora. Saudade. Melancolia. Hábitos demasiado bons para nunca mais recordar. Quem sabe o que achariam? Não importava. Não naquele momento.

As pernas de Louise, levemente acariciadas e instigadas pelas mãos provocantes de Brian, prenderam-se em redor da cintura deste, colando os dois corpos de maneiras irreversíveis. Ele carregou-a de volta para o quarto que – há tão pouco tempo, mas que, agora, lhes pareciam séculos – tinham abandonado. O mesmo quarto que tinham partilhado há tanto tempo que, agora, lhes parecia um nada. Um erro de sintaxe cometido pelo autor da trama das suas vidas. Os verbos que os uniam não podiam mais ser conjugados no passado.

Eu sou um mundo sozinho
Por isso é fácil dizeres não
Volta para mim esta noite
Para sermos a palma e a mão

Deitados naquela cama macia, de discernimentos enevoados pelo desejo e quem sabe pelo que mais, eles elipsaram os anos que passaram afastados. Cada beijo, um ano apagado e reescrito em versos que confortassem, e não machucassem. Cada toque, um outro perdão a mágoas por proferir em voz alta.

Uma única noite: a única certeza de que, daqui em diante, seus corpos sempre procurariam o poema um do outro para habitar. Porque, passada toda a mágoa e culpa, talvez fosse lá o único local a que eles pertenciam.



6 anos antes
New York


Se havia algo que se poderia dizer sobre a cidade, é que não deixava nada a desejar. Bem, talvez fosse um pouco confusa e agitada e heterogênea, mas tudo isso contribuía para o seu charme. Aquela era uma cidade de fortes contrastes, sim, mas também de vivacidade e oportunidades ímpares. Sarah sentia-se mais esperançosa só de observar o tumulto geral dos seus habitantes ou visitantes. Era como se o futuro chegasse primeiro ali.

Deram entrada no hotel de 3 estrelas – mas de boa aparência – que a escola havia marcado para eles. Todos juntos, deviam ser cerca de 80. Não chegavam perto do total de alunos que frequentavam o 2º ano, mas eram um número considerável para que fossem conseguidos bons negócios. Toda a viagem de fim de semana à Grande Maçã, juntamente com as várias entradas que era necessário pagar, tinha ficado realmente em conta. Sarah admirava-se até por mais pessoas não terem aproveitado a oportunidade. Era New York City!

 Como seria de esperar, ela, Jane e Lisa ocuparam um quarto triplo, no qual rápida e confortavelmente se instalaram. Estavam todas bastante animadas, mas nada se podia comparar ao alvoroço em que Jane havia entrado desde que tinham aterrado. L.A. também tinha sido fonte de excitação para ela, alguns meses antes, mas com N.Y… ela estava impossível.

- Sério, gente. Se eu achar um artista torturado, loiro e gostoso, eu fico mesmo por aqu—GENTE, OLHA O TOPO DO EMPIRE STATE BUILDING BEM ALI!

Sarah suspirou. Se fosse contar as vezes que Jane já havia proferido aquelas mesmas palavras, poderia até pensar que Nova Iorque tinha replicado o famoso arranha-céus para fazer mais dinheiro com turistas. Tipo, cem vezes mais dinheiro. Quanto ao artista torturado, loiro e gostoso… bem, talvez realmente houvesse cem deles produzindo arte torturada, mas gost—linda, nessa enorme cidade.

Lisa, entretanto, tinha a cara enfiada num daqueles guias turísticos em forma de livro. Não que ela pudesse realmente escolher o que eles iriam visitar – afinal, todo o fim de semana estava já planeado pelos professores acompanhantes –, mas ela dizia que gostava sempre de saber mais do local que visitava. Durante toda a viagem, ela havia bombardeado as amigas com “curiosidades interessantes” sobre inúmeras atrações nova-iorquinas, normalmente tendo a ver com a história do local ou bairro onde se situavam. Lisa era Lisa, oras. Porém, nos curtos momentos em que ela pousava o livro turístico e relia, em voz alta, algumas de suas passagens preferidas de Romeu e Julieta, Sarah não podia estar mais grata por tê-la do seu lado. E sabia que a amiga sentia o mesmo – sobretudo nos últimos tempos.

Esse era, afinal, o motivo pelo qual elas – tal como seus cerca de 80 espertos colegas – se encontravam na Grande Maçã naquele fim de semana. Não os últimos tempos, mas sim Romeu e Julieta. Estando a estudar a obra, vários professores de Literatura Inglesa – incluindo o seu, o Sr. Yates – consideraram que não havia melhor remédio para que os alunos entendessem bem a obra, do que fazê-los assistir à sua representação por uma das incontáveis companhias de teatro que povoavam a cidade de espetáculos culturais. Duas vezes. Eles veriam a peça duas vezes, representada por duas companhias diferentes. E tinham já visto Romeu + Julieta, o filme, para usar como termo de comparação. Mesmo que as garotas pretendessem, na verdade, comparar os protagonistas a Leonardo DiCaprio em quesitos que em nada diziam respeito à sua atuação. Quem sabe, talvez Jane sempre fosse encontrar seu artista loiro e gostoso – torturado sim, mas só por estar debaixo da luz dos holofotes.

Sarah estava entretida considerando tudo isto e imaginando os próximos três dias de férias, tentando, ao mesmo tempo, esquecer o fato de que Taylor estaria em Franklin durante o mesmo fim de semana. Quase considerara não ir na viagem, porém Taylor conseguiu convencê-la a não desperdiçar a oportunidade – mas só depois de prometer regressar durante uma semana inteira, bem em breve, para que ela pudesse usar e abusar da sua presença como quisesse. Uma semana inteira aos comandos da namorada… Para Taylor, isso não parecia tão mau assim.

Foi nesta altura que o telefone do quarto tocou. Jane, que estava freneticamente pulando pelo quarto, inspecionando todos os locais onde poderia se esconder um mini-bar, praticamente saltou para ele.

- Let’s hear it for New York, New York, New Yo-o-ork… - a voz dela tentou, em vão, imitar a de Alicia Keys, em Empire State of Mind. – Hmm… Sim, sim está… Aham, com certeza, querido. É… Ah, obrigado! Tchau.

- Jane! Posso saber o que você está fazendo? – Sarah repreendeu a amiga assim que esta pousou o telefone, mas não sem deixar escapar algumas gargalhadas antes.

- Oras, treinando minhas táticas de sedução no rececionista. Ele vai mandar alguém ao quarto dentro de 10 minutos. Parece que temos uma encomenda, aliás… você tem uma encomenda.

- Mas quê…? Por que é que eu haveria de receber uma encomenda num quarto de hotel em Nova Iorque?

- Vai que tem um admirador secreto, queridinha – Lisa comentou de forma mordaz, arrancando uma risada de Jane e um revirar de olhos de Sarah.

- E um extremamente bom, devo acrescentar.  É preciso muita coisa para acertar num número de quarto de hotel com 5 dígitos.

Outro revirar de olhos, várias risadas e dez minutos mais tarde, um moço batia à porta do quarto, carregando, de fato, uma pequena encomenda. Sarah pegou e agradeceu, voltando para junto das amigas. Pela morada do remetente, o pacote vinha de L.A. As suspeitas da garota tornavam-se cada vez mais claras.

- Deixa ver! Mas olhem só! Que coisa fofa – Lisa declarou, ao ver a camiseta branca estampada com o típico “I <3 New York”, mas estando “New” riscado e “Taylor” rabiscado por cima dele.

- Fofo? Experimente antes grudento – Jane acrescentou, como se achasse tudo isso repulsivo. O ar de brincadeira dela, contudo, era notório. Sarah abriu a camiseta para examiná-la melhor, vendo cair dela um pequeno papel.

“Porque você sabe que me ama mais que New York.
<3”

Revirou os olhos também para o papelzinho, não conseguindo, porém, reprimir o sorriso abobalhado que surgia em resposta. Imaginou-se usando a camiseta durante o resto do dia e, para dizer a verdade, gostou do que viu. Por isso, vestiu-a quando saiu do banho, arrancando elogios de Lisa e piadas de Jane. Enfim, tudo estava bem no mundo.

Desceram, como fora pedido pelos professores, para ir almoçar e visitar alguns locais turísticos. Veriam a primeira peça nessa noite, mas até lá, tinham ainda muito que percorrer. Já na entrada do hotel, onde os alunos estavam divididos em grupos de 20, os professores anunciaram que iriam começar com a lendária Times Square. Os adolescentes subiram prontamente para os onibus, entusiasmados por começar a “visita de verdade”, sobretudo por um local tão marcante quanto a enormíssima praça.

Se a própria viagem até Times Square foi motivo de uma agitada animação a cada nova esquina que viravam, o que dizer da reação geral quando finalmente chegaram ao destino? As luzes, os anúncios, as multidões intermináveis de pessoas… tudo era tão avassalador que se tornava quase impossível acreditar que fosse real. Mas era. Isso tornou-se notório quando começaram os primeiros empurrões e insultos. Nada como um pouco de má educação humana para uma pessoa se sentir bem vinda.

Ainda assim, os professores recuperaram o controlo rapidamente e conduziram cada qual seu grupo, pela praça enorme e, mesmo assim, lotada. Toda a profusão de luz e som tornava difícil escolher uma única direção para onde olhar; os grupos avançavam lentamente pela multidão, não querendo perder nada. Para além das enormes telas que pareciam estar em toda a parte, as restantes atrações eram, sobretudo, artistas de rua ou pessoas que simplesmente gostavam de dar nas vistas. Era possível encontrar de tudo ali – acredite, de tudo. Então eles simplesmente prestavam mais atenção para quem achavam merecê-la e tentavam não olhar especados para algumas… atuações mais chocantes.

Acima de tudo, os professores tentavam manter os alunos em movimento, tanto para que pudessem ver tudo no de que dispunham, como por causa de possíveis roubos ou outras complicações. Porém, no meio de cerca de 1 200 000 pessoas, evitar qualquer tipo de confronto era uma missão impossível. Pelo menos, foi isso que Sarah pensou quando sentiu seu corpo ir de encontro a algo.

- HEY! VEJA POR OND—

A menina de cabelos vermelhos – que agora estava completamente de frente para Sarah – parou de gritar quando seus olhos repararam na camiseta daquela. Mas isso só durou os segundos suficientes para o queixo dela cair.

- VOCÊ É FÃ DE PARAMORE?! MEU DEUS, OLHA QUE CAMISETA MAIS LEGAL! Oi, sou Izzy! – e, parando de novo com os berros, Izzy estendeu uma mão com unhas pretas de esmalte lascado para ela.

- Sarah! – ela sentia que estava assistindo a um show, tamanho era o clamor de vozes. – Desculpa, eu vim com a escola e eles já vão andando. Mas foi bom te conhecer!

- Igualmente! – a garota respondeu, virando-se de novo para o grupo que a acompanhava.

Sarah correu – se se pode chamar “correr” a andar muito depressa, enquanto se tenta desviar continuamente de outras pessoas – para apanhar Jane e Lisa, que tinham ficado o mais para trás possível, de modo a não perdê-la de vista. Porém, Sarah não precisou correr muito mais. Quando deram conta, todo o grupo tinha parado. Um dedilhado indicava que a causa para isso era um dos muitos artistas de rua. Mas porque razão haveria esse de conseguir que eles parassem para escutá-lo? Tentando conseguir uma resposta a essa pergunta, as três furaram um pouco por entre seus colegas, só até conseguirem ver quem dedilhava tão perfeitamente.

Sarah sentiu a incredulidade embater – muito mais fortemente do que quando trombara com Izzy ainda há pouco. Isso não era de todo possível! Aquilo poderia ser apenas uma ilusão, certo? Daquelas miragens que a mente faz-nos crer serem verdadeiras quando desejamos muito uma coisa. Ela estava quase a recompor-se o suficiente para perguntar às amigas se estavam vendo o mesmo que ela, quando o “artista de rua” levantou o olhar para ela, exibindo logo um sorriso largo, deslumbrante. Mas enquanto ele continuava o dedilhado e, agora, parecia preparar-se para cantar, ela continuava estática, perplexa, assustada com a possibilidade da flexão de um único músculo lhe provocar um ataque cardíaco, tal era o ritmo a que batia o seu coração. 


Hey there, Sarah

What’s it like in New York City?
I’m a thousand miles away,
But girl tonight you look so pretty
Yes, you do
Times Square can’t shine as bright as you
I swear it’s true
(Oi, Sarah
Como é New York City?
Estou a mil milhas de distância,
Mas, garota, esta noite você está tão bonita
Sim, está
Times Square não consegue brilhar tanto quanto você
Juro que é verdade)


 Apanhada de surpresa, Sarah não pôde conter as lágrimas que, juntamente com o riso, surgiram espontaneamente. Porém, ainda se sentia congelada – e isso, provavelmente, era uma coisa boa, caso contrário estaria abraçando o guitarrista (que também era um belíssimo cantor, por mais que ele não gostasse de o admitir) e impedindo-o, assim, de terminar a música. E isso seria realmente uma pena: o talento do garoto era algo extraordinário.


Hey there Sarah
Don't you worry about the distance
I'm right there if you get lonely
Give this song another listen
Close your eyes
Listen to my voice it's my disguise
I'm by your side
(Oi Sarah
Não se preocupe com a distância
Eu estou lá se sentir sozinha
Escute essa música de novo
Feche os olhos
Escute a minha voz é o meu disfarce
Estou do teu lado)
Oh it's what you do to me
Oh it's what you do to me
Oh it's what you do to me
Oh it's what you do to me
What you do to me
(Oh é o efeito que você tem em mim
Oh é o efeito que você tem em mim
Oh é o efeito que você tem em mim
Oh é o efeito que você tem em mim
O efeito que você tem em mim)

 

E enquanto todas as garotas suspiravam e as pessoas em geral batiam palmas perante tamanho talento, Sarah chorava e ria ainda, escutando apenas como toda a letra da música era perfeita para eles. Como esta descrevia tudo o que ela sentia, mas também o que sabia serem os sentimentos, desejos, vontades do seu namorado. Porque era ele que estava ali, em frente dela. Não Taylor York, o recém-famoso guitarrista da Paramore, que mil outras garotas achavam conhecer e amar. Ali, sem a banda junto dele, exposto às ruas de uma das capitais da cultura do mundo, Taylor era apenas o seu namorado, o garoto com quem ela tinha crescido e ainda haveria de crescer. Taylor, o garoto que ela amava.


Hey there Sarah

I know times are getting hard
But just believe me girl
Someday I'll pay the bills with this guitar
We'll have it good
We'll have the life we knew we would
My word is good
(Oi Sarah
Eu sei que os tempos estão difíceis
Mas acredite em mim, garota
Um dia pagarei as contas com esta guitarra
Vamos estar bem
Teremos a vida que sabíamos vir a ter
A minha palavra é verdadeira)
Hey there Sarah
I've got so much left to say
If every simple song I wrote to you
Would take your breath away
I'd write it all
Even more in love with me you'd fall
We'd have it all
(Oi Sarah
Ainda tenho tanto para dizer
Se cada simples música que escrevi para você
Te tirasse o fôlego
Eu escreveria tudo
Ainda mais apaixonada por mim você ficaria
Teríamos tudo)
Oh it's what you do to me
Oh it's what you do to me
Oh it's what you do to me
Oh it's what you do to me


Cada vez mais recuperada do choque, a sensação que invadia Sarah agora latejava como uma saudade forte, mas insatisfeita. O alívio para essa dor chegava sempre que Taylor levantava o olhar da fluente corrida dos seus dedos para lhe deixar um sorriso ligeiramente travesso, feliz por tê-la surpreendido, apaixonado por vê-la. Nesses momentos, Sarah conseguia realmente se convencer de que tudo aquilo era, de fato, realidade e não fantasia. Quando ele voltava a descer o olhar, porém, ela colocava tudo em dúvida.


A thousand miles seems pretty far

But they've got planes and trains and cars
I'd walk to you if I had no other way
Our friends would all make fun of us
And we'll just laugh along because we know
That none of them have felt this way
(Mil milhas parece bastante longe
Mas há aviões e comboios e carros
E eu caminharia para você se não houvesse outro jeito
Os nossos amigos fariam pouco de nós
E nós riríamos junto porque sabemos
Que nenhum deles sentiu o mesmo)
Sarah, I can promise you
That by the time that we get through
The world will never ever be the same
And you're the blame
(Sarah, posso prometer-lhe
Que quando nós atingirmos os nossos sonhos
O mundo nunca mais será o mesmo
E você é a culpada)
Hey there Sarah
You be good and don't you miss me
Two more years and you'll be done with school
And I'll be making history like I do
You know it's all because of you
We can do whatever we want to
Hey there Sarah, here’s to you
This one's for you
(Oi Sarah
Seja boa e não tenha saudades minhas
Mais dois anos e termirá a escola
E eu estarei fazendo história como faço
Você sabe que é tudo por você
Podemos fazer o que quisermos
Oi Sarah, por você
Esta é para você)
Oh it's what you do to me
Oh it's what you do to me
Oh it's what you do to me
Oh it's what you do to me
What you do to me
Oh Oh Oh
Oh Oh Oh


Enquanto os dedos de Taylor faziam soar os acordes finais, Sarah sentia a sua pulsação – que tinha estabilizado um pouco durante a extensa música – acelerar de novo; o seu coração imaginando, talvez, que em breve estaria a poucos centímetros de distância do de Taylor. Algures atrás de si, escutou um “OH DEUS, É O TAYLOR YORK!” que lhe teria passado despercebido, não se desse o caso de a voz lhe soar familiar. Porém, naquele momento, podia ser sua própria mãe gritando, que ela não daria qualquer importância: finalmente o garoto pousava a guitarra no estojo e Jane, prestável como nunca fora, se adiantava a trancá-lo, sussurrando algo para o guitarrista a meio caminho. Ele assentiu e encarou Sarah de uma vez, fazendo uma nova demonstração daquele sorriso travesso de antes. Ela sentiu o coração ceder e as pernas agirem por vontade própria, sem consciência nem permissão – mas o certo é que, em poucos segundos, tinha os braços em redor do pescoço do garoto que amava e ele, abraçando a sua cintura, segurava-a tão fortemente que seus pés quase não tocavam o chão.

O abraço durou uma eternidade para o público que tinha apreciado a performance do guitarrista, de modo que este já havia dispersado quando os dois se separaram um pouco para trocarem uma série de selinhos intermináveis.

- Não acredito que você fez isso – Sarah declarou, de voz ainda um pouco embargada, quando os dois já estavam um pouco mais recompostos, mas ainda abraçados. Taylor riu.

- Bem, não teria conseguido sem o Sr. Yates, então crédito devido a ele.

- Você combinou toda a vinda a Times Square com ele? – ela perguntou, incrédula, mas também curiosa por saber os detalhes. Taylor riu mais uma vez, mas agora, havia um tom irónico na sua voz.

- Não a visita a Times Square – Sarah sentiu a pulsação acelerar de novo perante as palavras do namorado, mas não entendeu o que isso quereria dizer.

- O que isso quer dizer exatamente?

- Quer dizer que você terá que me aturar durante todo o fim de semana – ele concluiu, com um sorriso vitorioso alegrando suas feições.

- Todo o fim de semana?

- Todo. O. Fim de semana.

Sarah abraçou-o novamente, uma força estranha tomando conta de seus braços trémulos, enquanto ela imaginava o quão bom esse fim de semana seria.

***

A escuridão da noite já se havia instalado, mas as ruas de Nova Iorque não o dariam a entender: a luz artificial era uma constante em cada local para onde se olhasse, fosse em candeeiros de rua, enormes anúncios, janelas incontáveis… A luz estonteante da cidade transmitia um sentimento eletrizante para a sua população: a ideia de que tudo era possível. E os visitantes naturais de Franklin, rodeados por toda aquela novidade, sentiam-se tão inspirados por essa ideia quanto qualquer uma dos milhões de pessoas que atravessavam essa mesma cidade, no mesmo exato momento.

Havia que considerar também a inspiração própria proveniente de ver uma peça shakespeariana representada ao vivo. Por mais que tivesse seus pequenos erros  ou falhas, toda a atuação era bem articulada e, até, moderna, e os atores, concentrados e sublevados pelo espírito da dramaturgia, desempenhavam a sua função de formas criativas e inesperadas, mas sempre envolventes. Como os professores pretendiam, a visualização atenta do espetáculo iria, com certeza, ajudar os alunos a atingirem uma melhor compreensão da história e seus detalhes e, por consequência, a atingirem também melhores notas. Uma vitória para ambos os lados, incluindo ainda uma agradável viagem. O que mais poderíamos pedir?

Para Sarah e Taylor – que assistiam a performance lado a lado e, na maior parte do tempo, de mãos dadas –, nenhum outro momento poderia ser mais doce do que aquele. Juntos numa grande cidade, assistindo a representação de uma das mais imponentes histórias de amor de sempre… A sua felicidade alastrava em redor, deixando todos bem dispostos e animados por verem, pelo menos, um amor adolescente dando certo.

Mas do outro lado de Sarah, sentava-se alguém que, ao contrário da maioria dos seus colegas, achava tudo aquilo uma enorme crueldade. Não diretamente por parte dos dois amigos, ou por parte dos professores, ou sequer por parte dos atores… só por parte da vida. Era uma ironia filha da mãe, essa que parecia regrar sua vida. Até agora, não se tinha apercebido da relação, mas, sentada na confortável cadeira da sala de espetáculos, ao lado de um casal apaixonado como ela, em tempos, fora, assistindo a representação de Romeu e Julieta… ela entendera. Entendera o que, há um ano atrás, não havia entendido.

Claro que aquele era um amor levado ao exagero; claro que tanto Romeu como Julieta tinham agido de formas precipitadas e, por isso mesmo, se tinha gerado toda a tragédia. Mas o fato é que o amor dos dois era o suficiente para fazê-los ver as coisas sob outras luzes – como era o caso do preconceito entre as duas famílias – e, sobretudo, para saber desafiar tudo por ele. Mesmo assim, era um amor que estava submetido às circunstâncias da vida e, logo, destinado a fracassar. A diferença entre o fracasso deles e o fracasso dela, porém, era incontornável. De súbito, ela entendeu o que era tão romântico naquela história: não era o suicídio impensado e precipitado, mas sim a ideia de que, perante as adversidades, o amor entre eles era forte o suficiente para arranjar algum modo de continuar – ainda que só depois da morte. E ela, tendo um amor que talvez conseguisse aguentar tudo aquilo, tinha preferido desistir em vez de procurar outra solução.

Mais do que nunca, Lisa entendia as palavras de seu pai, proferidas naquela tarde há muito esquecida, em relação ao sacrifício e às circunstâncias da vida. Há coisas que não conseguimos controlar, por mais que queiramos. Mas existem formas de lidar com isso, também. Porém, ela fechara os olhos a isso. Escolhera o caminho mais fácil e decidira não tentar mais. O que, em tempos, lhe parecera uma decisão acertada e saudável para o seu futuro, agora soava como mera desistência. Era isso aquilo em que o grande amor dela tinha resultado?

A opressão de todos esses sentimentos sobre o seu peito fê-la ceder. Sentada na ponta da fila, levantou-se silenciosamente e encaminhou-se para o banheiro. E lá, por fim sozinha com seus pensamentos, deixou tudo fluir: as lágrimas, os soluços, a dor. Estranhamente, era a primeira vez que chorava assim desde que tudo havia acontecido, uns 3 meses antes. Talvez porque nunca estivera sozinha assim até então, ou talvez porque nunca tinha tido uma perceção tão completa do que tinha feito… O certo é que, sim, ela ainda amava Zac. Mas havia deitado tudo a perder por causa de discussões e problemas que, agora, não tinha mais certeza se seriam tão incontornáveis assim. Ou se o que acontecera fora, na verdade, pura desconfiança, insegurança, cobardia da parte dela. Zac tinha suas culpas, claro, mas estava disposto a lutar. Ela, por outro lado, tinha desistido tão depressa que a fazia questionar se tinha merecido alguém como ele em primeiro lugar.

O som da porta abrindo alarmou-a, fazendo-a pegar um lenço rapidamente e passá-lo pela cara manchada de máscara. Sarah surgiu do seu lado, exibindo um triste sorriso compreensivo. Abraçou-a sem questionar, esperando que um ombro onde chorar – a única coisa que poderia oferecer – fosse confortante o suficiente. Passado algum tempo, Lisa explicou-lhe o que sentia; o que tinham dito naquela tarde há um ano; o que ver a peça representada a tinha feito entender.

- Mas, Lise… você ainda pode corrigir isso, sabe? Se quiser – Sarah experimentou calmamente, medindo a reação da amiga. Ela fitou-a de volta intensamente, seus olhos marejando mais uma vez. Abanou a cabeça.

- Não, não posso – sua voz ainda saía um pouco estrangulada, por conta do choro –, não posso mesmo. Quer dizer, olhe para mim! Sou uma confusão! Ele não precisa disso agora! Ele precisa de alguém que o saiba apoiar, agora mais do que nunca. E… eu não sou essa pessoa. Eu não sei lidar com a distância como você, Sarah. Eu não consigo passar por tudo aquilo de novo…

Sarah voltou a acalmar a amiga, tentando confortá-la como podia. A verdade é que, até ao presente, ela não entendia como Lisa e Zac se tinham separado. As coisas pareciam correr bem quando a banda se mudou, mas aos poucos, as discussões tornaram-se cada vez mais e, consequentemente, a confiança cada vez menos. Mas vendo Lisa chorando daquele jeito, ela podia confirmar o que já sabia: ela ainda amava Zac tanto quanto amava antes de ele partir. Só não confiava nele. E isso mudava tudo.

Algum tempo depois, Sarah e Lisa saíram do banheiro para encontrar todo o grupo saindo, por sua vez, da sala de espetáculos, em direção à receção. Rapidamente se encontraram com Taylor e Jane, já que estes sabiam onde elas estariam. Porém, encontraram-se também com uma outra pessoa completamente inesperada: caminhando em direção à entrada do edíficio, eles escutaram uma voz atrás de si.

- Hey there, Sarah!

Esta virou-se automaticamente, encontrando diante de si um rosto que não teria reconhecido se não fossem os cabelos vermelhos e a voz rouca que, agora, associava ao grito que escutara pouco antes de Taylor terminar a música. Era Izzy. Sarah deixou-se sorrir.

- Oi! – ela respondeu, um pouco confusa devido às circunstâncias – Você aqui?

- É… eu trabalho nessa companhia – ela respondeu, calmamente, mas mudando logo o tom de seguida. – Agora… Cara, agora eu reconheço você! Você fazia parte da formação da Paramore quando eles lançaram o primeiro álbum! E você realmente ama o Taylor, né? Aquilo em Times Square foi tão, mas tão fofo!... Oh, mas que indelicado da minha parte… Oi gente, sou Izzy. E Taylor… sua banda é… per-fei-ta. Você é incrível!

Por esta altura, todos – incluindo Lisa – já sorriam largamente, conquistados pela simpatia contagiante de Izzy.

- Gente… - Taylor tentou responder, ainda um pouco tomado de súbito pela alegria da fã. – Obrigado, sério! É sempre bom ouvir algo assim.

- Por favor, nem agradeça! E gente… que dizem, uma foto com Izzy? Sim, vocês também, eu também reconheço vocês! Você – ela apontou para cada uma das outras duas garotas, já de celular na mão, pronto para fotografar o momento – é Jane Streep, baterista… depois e antes de Zac. E você é Lisa, amiga de todos eles, e, pelo que sei, já até namorou Zac. Tem umas fotos com vocês todos juntos que são só puro amor!

- Então vamos tirar uma puro amor que a inclua a você, que tal? – Sarah falou, ainda rindo de forma aberta e livre, conforme Izzy inspirava. Esta assentiu, animada como parecia ser seu costume, e pediu a um dos colegas das garotas para fotografá-los.

Depois de um pouco mais de conversa, alguns autógrafos, muitos risos, enfim os quatro amigos nascidos em Franklin tinham que seguir, apressados pela voz insistente do Sr. Yates. Izzy voltou a adentrar o edifício, desaparecendo indefinidamente da sua vista, mas não das suas vidas.

Fosse obra do acaso ou de algo parecido com destino, o fato é que ali se marcava o início de uma longa amizade.

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